Força da Justiça

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domingo, 21 de dezembro de 2014

Projeto nº 117/2003 sobre guarda compartilhada: VETE-O, PRESIDENTA!

Querida Presidenta reeleita Dilma,


Vete o Projeto Lei do Senado de nº 117/2003. 

Primeiramente porque ele é, no mínimo, mal redigido, para não dizer mal intencionado ao criar uma confusão entre guarda compartilhada e guarda alternada, não contemplada em nosso ordenamento. A confusão está explicitada desse sua justificativa, na qual é citado trecho do discurso de uma juíza que, inclusive, usa o termo "menor" ao invés de criança e adolescente, e que fala, dentre outros, da possibilidade de domicílio alternado. Embora o PL não tenha explicitamente mencionado domicílio alternado, indica "tempo de custódia fixa dos filhos deva ser dividido de forma equilibrada" de convívio entre os filhos e "cidade base de moradia", ou seja, se não declarou explicitamente, faz de maneira implícita, o que induz a erros de interpretação, algo grave.

Ora, Presidenta, na guarda compartilhada o que mais está em jogo não é o tempo dividido de forma igualitária ou equilibrada e nem fixação de cidade base de moradia, pois a criança ficará com uma das partes, morará com ela e terá, queira ou não, mais tempo com esta. O cerne da guarda compartilha é o ideal no qual mãe e pai possam refletir conjuntamente sobre decisões a serem tomadas para o melhor interesse do filho e, assim, terem todos qualidade crescente na relação. A preocupação por "custódia física" e cidade domicílio são discussões típicas do regime de guarda alternada. Ademais, o termo custódia física parece ter semelhança com a doutrina da situação irregular,  na qual o termo menor, significativo da coisificação de crianças e adolescentes, fez, infelizmente sentido com a prática de outrora, algo que a Constituição Federal de 1988, Convenção dos Direitos da Criança, o Estatuto da Criança e do Adolescente romperam radicalmente. 

Compartilhar, ao contrário da justificativa cheia de contradições do Projeto Lei, possui sim a condição anterior da vontade dirigida a amar e pensar o destino de um filho. A lei não tem o poder de alterar a ausência de vontade e forçar essa condição fere frontalmente o dever de proteção a crianças e adolescentes. O Projeto Lei tem sim evidente o intuito de coisificar a estas, tornando-as objetos de experiência na qual juízes agora teriam que aplicar a guarda compartilhada ao perceberem que pai e mãe possuiriam, em tese, a condição de a exercer. Ou seja, em nome de obrigar a Magistratura- é o que pretende equivocadamente o Projeto -  a ter outro entendimento do que seria "sempre que for possível", como determinou a lei da guarda compartilhada que modificou o Código Civil, aliada ao bom senso da vontade mínima do pai e da mãe, criou-se praticamente um automaticismo no qual pouco importará a saúde emocional da relação entre pai e mãe e destes com os filhos, o que importará mesmo é criar a ilusão de que a obrigatoriedade do cumprimento de uma super decisão judicial funcionou ao obrigar os envolvidos a pensarem e refletirem a respeito dos filhos É mesma ilusão de legislar para tornar o amor obrigatório.

O Projeto Lei é tão confuso que, em sua justicativa, afirma haver perda de tempo do Congresso Nacional ter aprovado a Lei da Guarda Compartilhada, se o  número das sentenças a esse respeito não foi significativo, e que esta situação poderia beneficiar pessoas de má fé. Houve perda de tempo, então, quando a lei que definiu a alienação parental foi aprovada e sancionada? 

Sim, é um projeto de lei com cara de "bom senso", afinal seria o melhor para a criança ter pai e mãe decidindo juntos questões cotidianas e importantes, só que os "mas".

Para se compartilhar a guarda de alguém, ainda mais de uma criança, há, como é preciso repetir,  critérios anteriores: amor verdadeiro, vontade, empenho, reflexão, responsabilidade. Não é isso que vemos, infelizmente, na maioria dos pais. Vejo-os desfrutando de todo privilégio que o machismo produz e não há lei que mude esse mentalidade. Trabalhei, como coordenadora do Projeto Defendendo o direito à Convivência Familiar da Defensoria Pública de São Paulo em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em 2009, por alguns homens, pais-educadores, ou seja, pais de verdade, que sofreram com o "revés do machismo" por não serem ouvidos pelo Poder Judiciário, uma vez que "homens" devem apenas prover, leia-se pensão alimentícia, e não educar, papel da mulher, mãe. Homens que eram vistos como quem tem algum interesse obscuro na disputa da guarda de uma criança ou o que o valha (reinserção familiar na questão de acolhimento institucional), mas não tenho receio de dizer, são minoria. O que vi e vejo é uma fila imensa de mulheres mães em Fóruns querendo saber do processo de reconhecimento de paternidade, de pensão alimentícia e ouço também homens se eximirem do papel de cuidadores porque a "ex-mulher" não deixa, chego a sentir vontade de chorar, poupem-me, parece que até a luta na justiça para defender o direito dos filhos tem mais a cara de uma mulher do que a de homem.

Então pergunto: dentro desse quadro machista, explorador, como tornar obrigatório amar verdadeiramente uma criança, colocando-se a si mesmo em segundo plano?

Não tenho dúvida de que o Projeto Lei foi pensado também com base na situação desses pais de verdade, uma vez que diz que o não incremento da guarda compartilhada beneficia pessoas de má fé. Sendo a maioria esmagadora de guardiãs formada por mulheres, só posso vir a crer que o autor do Projeto falou sobre pais em situação judicial injusta, mas para isso há a lei que versa sobre a alienação parental, como já mencionado, e a necessidade que beneficiaria a todas e todos de humanizar o Poder Judiciário.

A legislação atual já dá diretrizes coerentes, no qual o que se deve atender é o que melhor se demonstrar para a criança.

A Constituição Federal de 1988 afirma que é dever de todos proteger a criança de toda forma de negligência, opressão e etc (artigo 227), ou seja, cabe nos casos que chegam ao Judiciário, haver estudo sério por profissionais competentes para que a verdadeira proteção seja concedida.

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, cujo patamar está abaixo da Constituição Federal e acima de todas as demais leis, determina, em seu artigo 3, que:

1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.

Essa é e deve ser a maior premissa. Tornar a guarda compartilhada obrigatória (sim, porque não ouvir os pais a respeito e deixar de a aplicar só se uma das partes se opuser é criar o automaticismo e retomar a coisificação de crianças) viola, ao meu ver, a Convenção porque rompe com a ideia maior de estudar com atenção e seriedade, em cada caso concreto, o que é melhor para Caio, Laura, Juliana, Caíque, cada criança com seus anseios, desejos... Obrigatoriedade gera automaticidade, o que nada tem a ver com a beleza e complexidade humanas.

O Código Civil, que deve obedecer a Constituição Federal e a Convenção dos Direitos da Criança, seguiu a trilha e não determina a obrigatoriedade nem da guarda unilateral e nem da compartilhada. Afirma acertadamente que esta deve ser incentivada. Repito: incentivada.

E o Estatuto da Criança e do Adolescente deveria ter seus princípios seguidos, que são baseados na Constituição Federal e na Convenção dos Direitos da Criança, em todos os casos em que houvesse interesse de criança na discussão. É uma lei que muito nos ensina sobre ouvir, respeitar, sentir @ outr@.

Repito, sem medo de errar, o tal projeto confunde guarda compartilhada com guarda alternada, sequer existente no Direito Brasileiro, no qual a criança mora alternadamente na casa dos pais, o que prova que deputados e senadores precisam estudar mais.

Caso esse projeto não seja vetado, penso que o Brasil dá força ao machismo mais uma vez e retoma o Código de Menores. Assim todo argumento de uma mulher sobre a impossibilidade de compartilhar a guarda de sua criança com o pai desta vai ser entendido como mágoa, retaliação, uso de criança como objeto de vingança... Em uma rede de discussão ouvi, inclusive, poucas mulheres argumentando serem a favor do projeto para acabar com anos de injustiça a pais verdadeiros. Como demonstrei só um pouquinho, essa injustiça não advém da lei e sim do olhar viciado da prática, viciado não à toa, mas que indica também a necessidade de mudança no trato com em geral com as pessoas que se vêem diante do Judiciário para resolver alguma questão. Mesmo olhar que, aliás, impõe, na prática, que pais arquem com 30% do seu salário para pensão alimentícia (porcentagem inexistente na lei de alimentos) e que mães assim arquem com praticamente toda sua remuneração. Importante também lembrar que não temos controle externo da magistratura;

Caso o projeto lei seja aprovado, talvez casos sombrios, horrorosos, tornem-se emblemáticos e apontem na pele de crianças esse erro infeliz e irresponsável.

Por essas razões me junto a outro número infinito de mães que pedem o mesmo: vete esse Projeto Lei. Temos muita luta diária neste país que, embora os avanços, ainda pouco assegura direitos à infância e adolescência, violenta mulheres, precisa discutir os ensinamentos de Laura Gutman sobre maternidade. Seria honroso respeitar o tempo de amar nossas crianças e bem cuidar delas e pouparmos de conduzir uma batalha no STF sobre controle de constitucionalidade, convencionalidade, se acaso este projeto tornar-se lei.


#vetadilma!#

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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Guarda compartilhada

O Senado aprovou, por unanimidade, o Projeto Lei nº 117/2013 de autoria da Câmara dos Deputados, que obriga que a guarda de crianças e adolescentes seja compartilhada, ou seja, direitos e deveres iguais para pais e mães. Recebi uma postagem do Senador Suplicy com uma foto na qual @s Senadores comemoravam o resultado. Confesso ser fã do Senador Suplicy, mas pensei "até tu, Brutus"...

Espero ansiosamente, sinceramente, escancaradamente o veto da Presidenta Dilma por várias razões, explicarei algumas.

Primeiramente é um projeto de lei com cara de "bom senso", afinal seria o melhor para a criança ter pai e mãe decidindo juntos questões cotidianas e importantes e blablablá. Só que tem o "mas".

Para se compartilhar a guarda de alguém, ainda mais de uma criança, há critérios anteriores: amor verdadeiro, vontade, empenho, reflexão, responsabilidade. Não é isso que vejo, infelizmente, na maioria dos pais. Vejo-os desfrutando de todo privilégio que o machismo produz e não há lei que mude esse mentalidade. Trabalhei por alguns homens, pais-educadores, ou seja, pais de verdade, que sofreram com o "revés do machismo" por não serem ouvidos pelo Poder Judiciário, uma vez que "homens" devem apenas prover, leia-se pensão alimentícia, e não educar, papel da mulher, mãe. Homens que eram vistos como quem tem algum interesse obscuro na disputa da guarda de uma criança ou o que o valha (reinserção familiar na questão de acolhimento institucional), mas não tenho receio de dizer, são minoria. O que vi e vejo é uma fila imensa de mulheres mães em Fóruns querendo saber do processo de reconhecimento de paternidade, de pensão alimentícia e ouço também homens se eximirem do papel de cuidadores porque a "ex-mulher" não deixa, chego a sentir vontade de chorar, poupem-me, parece que até a luta na justiça para defender o direito dos filhos tem mais a cara de uma mulher do que a de homem.

Então pergunto: dentro desse quadro machista, explorador, como tornar obrigatório amar verdadeiramente uma criança, colocando-se a si mesmo em segundo plano?

A legislação atual já dá diretrizes coerentes, no qual o que se deve atender é o que melhor se demonstrar para a criança.

A Constituição Federal de 1988 afirma que é dever de todos proteger a criança de toda forma de negligência, opressão e etc (artigo 227), ou seja, cabe nos casos que chegam ao Judiciário, haver estudo sério por profissionais competentes para que a verdadeira proteção seja concedida.

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, cujo patamar está abaixo da Constituição Federal e acima de todas as demais leis, determina, em seu artigo 3, que:

1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.

Essa é e deve ser a maior premissa. Tornar a guarda compartilhada obrigatória viola, ao meu ver, a Convenção porque rompe com a ideia maior de estudar com atenção e seriedade, em cada caso concreto, o que é melhor para Caio, Laura, Juliana, Caíque, cada criança com seus anseios, desejos... Obrigatoriedade gera automaticidade, o que nada tem a ver com a beleza e complexidade humanas.

O Código Civil, que deve obedecer a Constituição Federal e a Convenção dos Direitos da Criança, seguiu a trilha e não determina a obrigatoriedade nem da guarda unilateral e nem da compartilhada. Afirma acertadamente que esta deve ser incentivada. Repito: incentivada.

E o Estatuto da Criança e do Adolescente deveria ter seus princípios seguidos, que são baseados na Constituição Federal e na Convenção dos Direitos da Criança, em todos os casos em que houvesse interesse de criança na discussão. É uma lei que muito nos ensina sobre ouvir, respeitar, sentir @ outr@.

Ainda, o tal projeto confunde guarda compartilhada, na qual a criança tem um domicilio fixo, com guarda alternada, sequer existente no Direito Brasileiro, no qual a criança mora alternadamente na casa dos pais, o que prova que deputados e senadores precisam estudar mais.

Caso esse projeto não seja vetado, penso que o Brasil dá força ao machismo mais uma vez. Assim todo argumento de uma mulher sobre a impossibilidade de compartilhar a guarda de sua criança com o pai desta vai ser entendido como mágoa, retaliação, uso de criança como objeto de vingança... situações que já discutimos por aqui. Em uma rede de discussão ouvi, inclusive, poucas mulheres argumentando serem a favor do projeto para acabar com anos de injustiça a pais verdadeiros. Como demonstrei só um pouquinho, essa injustiça não advém da lei e sim do olhar viciado da prática, viciado não à toa, mas que indica também a necessidade de mudança no trato com em geral com as pessoas que se vêem diante do Judiciário para resolver alguma questão. Mesmo olhar que, aliás, impõe, na prática, que pais arquem com 30% do seu salário para pensão alimentícia (porcentagem inexistente na lei de alimentos) e que mães assim arquem com praticamente toda sua remuneração.

Caso o projeto lei seja aprovado, talvez casos sombrios, horrorosos, tornem-se emblemáticos e apontem na pele de crianças esse erro infeliz e irresponsável.

#vetadilma!#

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domingo, 19 de outubro de 2014

Espelho

Enfrentar inúmeros tipos de preconceito e discriminação é enlouquecedor ou quase. 

Pensei no que escrever, pois quero este espaço vivo a ponto de me aproximar de outras mulheres guerreiras que precisam de ajudam. Então, vou botar neste "papel" o que vier.

Quando uma amiga, uma conhecida ou até mesmo desconhecida desabafar com você alguma violência vivida, um "amor" que fragiliza ou qualquer outra situação difícil para ela, ouça, sobretudo empreste seus ouvidos. Se não souber o que falar, reconheça. Acredite, confessar isso te dará a permissão de pensar melhor e, em consequência, dizer algo que possa ser de fato acolhedor. Coisas como "mas você o ama", "homem é assim mesmo", "se dê o valor", "seja superior", "o mundo é assim, fazer o quê?" são enfraquecedoras em boa parte das vezes.

Ouça as histórias como se fosse o espelho falando contigo. Você pode pensar agora: "que horror, eu nunca fui ofendida por um homem!" Pode até ser (será mesmo? há ofensas silenciosas), mas dificilmente alguém nessa vida não enfrentou a experiência de se sentir maltratada por uma pessoa e não saber o que fazer e mais: sentir "afeto" por ela. Colocar-se no lugar (espelho) não significa naturalizar a violência. Infelizmente é comum, mas ser normal é outra coisa totalmente diferente. 

Colocar-se no lugar de outra pessoa, buscando referência de situações semelhantes vividas é, para mim, reconhecer sentimentos, perceber-se igual, enquanto ser humano, e o passo seguinte é identificar que o mesmo sentimento como raiva, por exemplo, pode desencadear reações diferentes, conforme cada pessoa e aí está o direito à diferença, amigo do direito à igualdade, caminham juntos. Há quem sinta raiva e grite, há quem engula, há quem só vai sentir a raiva bem depois do que aconteceu, há quem adoeça...

Com a experiência do espelho, os "conselhos" podem se transformar, já não é mais o "se eu fosse você, procuraria uma advogada" (esse "se eu fosse você" dá a impressão de superioridade, ainda que não seja a ideia) e pode vir como uma pergunta: "e se você procurasse uma advogada?". Veja só que legal, aparece uma pergunta que quer ouvir uma resposta, pois em um diálogo é assim que funcionam as coisas, todas as pessoas envolvidas nele tem experiências , ideias para compartilhar. Melhor ainda quando a pergunta envolve o 'nós': " e se nós procurássemos uma advogada?". 

Esse exemplo vale para outras situações. Ouvir, por-se no lugar, compreender o sentimento, abrir mão de receitas, pensar junto.

Apoio, presença. 

Uma mais uma é sempre mais que duas (peguei emprestado de Beto Guedes e adaptei para nós).

Asè


domingo, 28 de setembro de 2014

O que bonecas negras, o caso Goleiro Aranha, a vitimização de Patrícia Moreira e "o papel da mulher na sociedade moderna" tem em comum. Esboço de uma reflexão.

Nas últimas semanas fui convidada a fazer formações (momentos de apropriação de conceitos e reflexões) para mulheres com o tema "O papel da mulher na sociedade". Como o tema é muito amplo, optamos, eu e a parceira de trabalho, por conhecer as duas turmas, pois haveria 3, 4 encontros com cada uma delas, e sentir o que traziam como anseios, saberes e dali tocar em frente.

Eram turmas bem heterogêneas, com mulheres de diversas faixas etárias, escolaridade, experiências profissionais, raça/etnia bem como de diferentes territórios desta grande capital paulista.

Algumas levavam suas crianças ou porque não tinham com quem as deixasse ou simplesmente porque queriam estar  presentes com elas. Sugeri às pessoas que me convidaram a criação de "uma caixa pedagógica" com a inclusão de bonec@s negr@s bem como de livros infantis que garantissem esses personagens. Percebi um silêncio que depois de confirmou como constrangimento. 

No dia posterior, no qual haveria atividade, a equipe mostrou uma caixinha com alguns brinquedos doados por ela mesma. Achei legal e sublinhei a sugestão, mais uma vez, da inclusão de bonecos negr@s e dos livros. Quando cheguei em casa, havia recebido uma mensagem, enquanto estava a caminho, de que não havia sido previsto e assim seria não seria possível atender. Não entendi. "Repliquei" que realmente não percebemos todas as necessidades no momento inicial, mas era possível alcançar parcerias. Novo silêncio. Percebi alteração brusca na forma em que passei a ser recebida pela equipe. Escrevi à uma integrante com quem tinha laços de amizades e perguntei se havia acontecido algum constrangimento com a sugestão e li "com a sugestão propriamente dita não".

Enfim, passei a levar alguns brinquedos de minha filha para emprestar às crianças. Até onde pude participar, as crianças que acompanhavam suas mães eram negras. 

Continuei a realizar as formações e em uma delas, nos últimos cinco minutos, houve uma colocação precipitada, ao meu ver, a respeito de Patrícia Moreira, uma das pessoas que ofendeu racialmente o goleiro Aranha, ser realmente a única culpada. Isso ocorreu justamente na semana em que a mídia, evidentemente que isto ocorreria, investiu maciçamente na vitimização de Patrícia para tentar apagar toda a repercussão que o caso teve, no sentido de alcance nunca visto anteriormente. Há inquérito policial em andamento, Patrícia foi a primeira a ser identificada, outros também devem o ser; por insistir em cantos de guerra racistas o Grêmio foi penalizado com a expulsão da Copa do Brasil; Aranha passa a ser merecidamente símbolo da voz da população negra que já não aguenta mais as ofensas banais, as piadas racistas, o genocídio histórico de sua juventude.

Cinco últimos minutos... passamos a ouvir justificações racistas e Aranha saiu como culpado por ter sido ofendido e ainda ganhou o adjetivo de racista. Enfim, nosso papel como formadoras é o de questionar os preconceitos e discriminações que atacam a dignidade humana e a bola do racismo foi cantada, quer dizer, chutada. Seria de toda forma, não tenho dúvida, porque somos brasileir@s e o racismo está entranhado em nosso cotidiano. A melhor forma de combate é o reconhecimento e reflexão e entramos nesse jogo querendo ganhar de goleada contra o racismo.

Formação preparada a quatro mãos. Sou chamada, em separado da minha companheira de trabalho, pela representante da equipe e ouço frases desencontradas. Tenho, sobretudo, a imagem de alguém em descontrole, cuspindo autoritarismo e ódio. Talvez, em meio às falas desencontradas, a que resume é: "aqui não falamos sobre isso e sim sobre outras discriminações". Não fui ouvida e percebi que seria inútil insistir em qualquer "conversa" com aquela "interlocutora".

Não aceitei o "convite" de me retirar e toquei as atividades, embora com forte censura no ar, a temática do racismo foi enfrentada e considero que semeamos, provocamos o rompimento com a ideologia da superioridade racial branca. Quando haverá colheita (haverá?), não sei. Quando haverá o rompimento (haverá?), não sei, mas posso afirmar que vi expressões de mulheres sendo acolhidas em suas dores quando narraram o racismo e libertar a voz, gritar a dor, é um exercício empoderador. Vi que o grupo se abriu para contar mais dores e também alegrias. A alegria apareceu, curiosamente após a dor ser libertada. 

E passei a refletir mais ainda, processo no qual estou e ficarei por um bom tempo, sobre a ligação entre bonec@s negr@s, o caso Aranha, a vitimização de Patrícia Moreira e o "papel da mulher na sociedade moderna". E tem tudo a ver. 

Primeiramente, racismo não é assunto só de quem é negr@, indígena, cigan@, é assunto de tod@s nós. A ideologia da superioridade racial, que sustenta o racismo, prejudica a saúde emocional relações humanas, assim como o machismo. Estamos doentes,  Além de que devemos nos lembrar sempre do efeito "teia", junção de fatores, por exemplo, a mulher negra tende a enfrentar o machismo e o racismo ao mesmo tempo.

Segundo, vi um ponto positivo nesse "projeto": as mulheres podem levar suas crianças. É um exemplo de respeito à dignidade da mulher mãe e das crianças e adolescentes. Se lá as crianças puderem encontrar brinquedos que represente a todas, o avanço seria muito bonito, pois é impossível negar que crianças se desenvolvem ao brincar e na relação com os brinquedos repetem o que vêem, mas sobretudo criam, amam, pois estão menos adoentadas do que nós. 

Fiz uma atividade há muito tempo, uma contação de história em que a personagem principal era negra. Uma das crianças não a suportou e tive que proteger para não ser destruída. Foi um aprendizado difícil, acho mais para mim do que para a criança "de mal com a boneca negra", pois não sabia ao certo como fazer. Só que na outra contação de história, com a mesma boneca e criança, algo muito importante mudou o cenário. A criança se apaixonou pela boneca, acarinhava-a... Só as duas saberiam contar (risos) sobre a redenção que ali houve. A possibilidade de amor e cura de uma criança é bem maior do que a nossa.

Tudo isso #juntoemisturado# e  mais ações contribuiriam, sem dúvida, para que alguém não visse como piada chamar o outro de "macaco" ou "macaca" ou percebesse o crime a existência de hinos que exaltassem o ódio, o racismo, o machismo. Contribuiria também para que a Lei 10639 fosse mais conhecida, ampliada a todos os espaços de educação (formais e informais) e garantida, poderia contribuir para casos como o que Patrícia Moreira é apontada como ofensora racial despertasse mais o sentimento de que precisamos eliminar o racismo e não procurar um meio para absolver a ela - e todos os demais que assim praticarem (caso de repercussão  mundial, lembre-se)- e condenar quem realmente foi vítima. Precisamos nos reeducar e ponto.

Racismo, machismo, maternidade, direito a brincar em condições de igualdade, equipe do Projeto querido mencionado, tudo isso tem a ver com o "papel da mulher na sociedade moderna" e de todas as mulheres, querid@s, brancas, negras, indígenas, amarelas porque tem a ver com o respeito às diferenças, intimamente ligado ao direito à igualdade que é o ideal a ser alcançado pelo Projeto que coordenam.

Sugestões:


Imagem: "O xadrez das cores" de Midmix e Marco Schiavon

Assista também "O CIRCO- Mulher, mãe e negra": https://www.youtube.com/watch?v=oDKS7TxVOnk

Professor Kabengele Munanga fala sobre o Genocídio da Juventude Negra e o Racismo: https://www.youtube.com/watch?v=fU86gtP8B1E








sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Alienação parental e alienar-se parentalmente

Estou bem pensativa nesses dias sobre o tema da alienação parental, mas sob a ótica do alienar-se parentalmente, ou seja, quando deliberadamente a ausência paterna (é o que tratarei aqui, sabidamente há casos de ausência materna em menor número) na vida de uma criança, aliena esse "papel".

Há muito trabalho tanto como educadora como advogada na orientação de pais sobre como o bem estar da criança é que deve nos direcionar e realmente acho isto. Nessa trajetória percebi sim vários casos em que a criança era usada como objeto de barganha de algo ou como vingança e, como geralmente somos nós, mulheres, a assumir a responsabilidade pela educação, os casos que teria para contar são sobre mães que dificultavam o contato do pai com o filho ou filha como forma de obter atenção ou de, como já dito, vingar-se da relação mal sucedida. Há também casos em que o interesse é financeiro. 

Só que esmagadoramente as situações expõem o contrário: mães que trilham solitariamente a maternidade não por opção, mas porque quem seria o parceiro na relação com a criança decide se alienar da responsabilidade e para tal inventa mil desculpas ACEITAS pelas pessoas sem muito questionamento. De forma geral, as desculpas tem a ver com responsabilizar a mãe da criança pela alienação paterna. Ah, mas pode ser qualquer outra pessoa ou situação, para estes pais o fato é que não assumem qualquer responsabilidade. Aliás, há aqueles que pagam pensão alimentícia não como participação na sobrevivência d@ filh@, mas como trunfo para se alienarem emocionalmente da vida de quem contribuíram para vir ao mundo.

Em voga a questão da alienação parental, trazida acertamente pela Lei 12318/2010 que a define como a " interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. "

Não tenho dúvida de que comportamento tão prejudicial às crianças e adolescentes deva ser identificado o mais rápido possível e medidas responsáveis sejam tomadas. A alienação parental existe desde muito tempo e só quem passou por ela e a percebeu pode dizer que se leva a vida toda para cicatrizar as feridas. Só que não encontro na legislação algo que me conforte quanto à omissão paterna (o que aqui reflito a respeito). Pensando nas hipóteses mais graves, ainda não vejo muito sentido nelas, parecem-me que favorecem os homens que não são pais de verdade. Destituir o poder familiar de quem nunca se importou com isso, por exemplo, para quê? Talvez mais para frente ainda o papai diga que não pode participar porque a malvada mãe da criança mentiu para o juiz. E o que se diria à criança para embasar uma ação de destituição do poder familiar? Horrível. Beco sem saída. Criminalizar? Para quê? Ainda que fosse não resolveria a questão da ausência, do alienar-se de forma proposital e não assumida, que tantas vezes dilacera os sentimentos d@s pequen@s.

Gostaria mesmo que esses pais fossem obrigados a se matricular em cursos de "como amar uma criança" no qual fossem estimulados a refletir sobre as consequências deste tipo de alienação e terem estágios de convivência com as crianças analisados. Educação forçada tem algum alcance? Não sei, mas algo deve ser tentado e que profissionais da sociedade, ou seja, não de instâncias do Sistema de Justiça, fossem os educadores e educadoras, Penso além, tais profissionais devem beber saberes do feminismo sim, da educação com apego, da criação humanizada. Até para as mulheres que não permitem a convivência entre pai e filh@s o caminho, em minha opinião e se for caso de mágoa, é poder acolher, ouvir e dizer: "certo, você tem razões em sua mágoa, mas vamos pensar outros caminhos para as crianças" e não negar o direito à mágoa ou a inferiorizar, julgar moralmente por isso.

Recentemente ouvi dois relatos sobre pais que pagam bem irregularmente a pensão alimentícia e que ainda assim ingressaram com ação de regularização de visita com o argumento óbvio de que são impedidos pela mãe das crianças de ter contato, apresentando-se como pai exemplares, entristecidos pelo distanciamento forçado e tal. Nos dois casos me chamou atenção o fato de que as mulheres ao tentarem argumentar que não eram contra a convivência e sim sobre a forma pela qual o pai queria, desrespeitando o período de amamentação, inclusive, ouviram frases como "ele tem razão. Nós (judiciário) estamos cheios de casos de crianças que os pais desapareceram. Este aqui quer estar com @s filh@s e se você os ama tem que agradecer". E a vida segue. Nada aprofundado. O machismo agradece.

Acredito, todavia, nas mudanças trazidas pela luta diária. Prefiro imagens de mulheres guerreiras que abrem caminhos, ainda que dele não possam desfrutar a tempo, à imagem da Justiça Cega. 

E essa pequena reflexão-desabafo de hoje trás à minha lembrança o verso do poema Consolo na praia, de Carlos Drummond de Andrade:

"a injustiça não se resolve
 a sombra do mundo errado
 murmuraste um protesto tímido, mas virão outros".





quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Soluçar de dor

Há algo no ar que me faz ter otimismo. Embora o cenário que se arrasta a séculos seja péssimo, me parece que o tempo, este amigo 'esquisito', tem demonstrado que se a violência racial não deixou de existir, os movimentos organizados, o grito politizado do goleiro Aranha recentemente, também não deixaram de ecoar e pontuam! Além de que tudo o que foi feito por aquelas e aqueles que estiveram aqui antes de nós, semeando, encontra momentos de colheita (salve Luíza Mahin, Tereza do Quariterê, Dandara, Chica da Silva, Movimento Negro Unificado, Carolina de Jesus, Zumbi, Martin Luther King, Malcom X, Mandela, Steve Biko...)

Se o cheiro de sangue, lágrimas, suor das dores diárias que o racismo provoca está no ar, também sinto as vibrações dos gritos por justiça, das gargalhadas em cada batalha vencida. Temos que comemorar sim.

O caso "Maria das Dores" ainda está no meu pensamento. Vocês devem se lembrar porque está bem recente, praticamente ao lado do caso Aranha: ela, jovem negra, posta uma foto na rede social em que está ao lado do namorado, branco, e passou a receber injúrias raciais como "onde você comprou essa escrava?" e etc.

A situação foi denunciada e lavrado o boletim de ocorrência. Até onde as investigações do inquérito foram divulgadas, o crime teria sido praticado por jovens na maioria entre 17 a 21 anos e de São Paulo, além que outros casais - como o formado por Maria das Dores e o namorado-  foram atacados pelo mesmo grupo, o que indicaria formação de quadrilha.

Também são jovens os torcedores do Grêmio que ofendiam o goleiro Aranha, embora, obviamente, o racismo não seja exclusivo da juventude, ao contrário, e é neste ponto que quero me ater.

Adolescentes e jovens desejam ser reconhecidos e para isso, muitas vezes, extrapolam valores que percebem nos adultos, como quem diz "eu também penso assim!' e mais: "eu não só penso, como tenho coragem de fazer, posso ser aceito?". Então, antes de fazermos coro com respostas imbecis como o da redução da idade penal, pensemos.

Sociedade de valores racistas!!!!!

Mas nosso grito ecoa:

Marcha contra o genocídio do povo negro em todos os cantos do país. É isso mesmo!
Campanha: Reaja ou será morto!
Manifestações em todo o país por Amarildo, Cláudia! (nenhum desses casos me sai da cabeça, especialmente o de Cláudia e da criança Juan)
Grêmio expulso da Copa do Brasil!
Organização contra a série "Sexo e as nêga" da infâme Globo e assim vai, assim vamos!

O que Maria das Dores perdeu com tudo isso, esse amigo tempo a dirá melhor, pois há perda minimamente da inocência de acreditar. Acredito que (tapa na cara do racismo, machismo) ela também tende a ganhar. Esteve ao lado de Zezé Mota, enfrentou a situação e passa, assim como o goleiro Aranha, a ser referência e com o adendo de que esses casos exemplares não tiveram como ser abafados pela mídia: Aranha gritou diante das câmaras, as injúrias raciais contra Maria das Dores se deram no facebook, cada vez mais pessoas filmam cenas violentas pelo celular e as denunciam. Torço para que sua identidade de mulher negra seja fortalecida com tudo isso.

Que o Judiciário seja invadido por esta demanda, da forma tradicional, de formas criativas e que seja denunciado em casos de racismo institucional.

Que nossos gritem ecoem em todos os espaços.


Alguns links relacionados:

Caso Juan: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/09/13/pms-do-caso-juan-sao-condenados-a-mais-de-30-anos-de-prisao.htm

http://www.geledes.org.br/ii-marcha-nacional-contra-o-genocidio-povo-negro/#axzz3CMacATzF

http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/04/18/nota-publica-da-campanha-reaja-ou-sera-morta-reaja-ou-sera-morto-sobre-a-greve-da-policia-militar-do-estado-da-bahia/

http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/09/filme-sobre-amarildo-discute-politica-de-seguranca-em-comunidades-do-rio.html

http://www.brasildefato.com.br/node/28217

http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/gremio/noticia/2014/09/stjd-exclui-gremio-da-copa-do-brasil-por-ofensas-racistas-a-aranha-4590000.html

http://esportes.r7.com/blogs/cosme-rimoli/x-01092014/  (Goleiro Aranha não aceita perdão de ofensora)

http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2014/08/chorei-muito-diz-jovem-negra-vitima-de-racismo-em-foto-no-facebook.html


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Digna de ser amada


"Art. 1o  Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Art. 2o  Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3o  Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
§ 1o  O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 2o  Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.
Art. 4o  Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar."

Assim começa a Lei Maria da Penha, esta adolescente de 14 anos apenas.

No jogo da violência doméstica, nós, mulheres, podemos demorar a entender que somos violentadas e aí tem várias questões e obviamente uma fonte desencadeadora, o machismo.

Desde crianças a maioria de nós possivelmente vivenciou situações de castração de nossa essência, de nossa liberdade, das mais invisíveis às mais chocantes. Liberdade tem a ver com o pensamento. Quanto menos livres, menos auto-conhecimento, mais alienação.

Lembro de intervir em uma cena na qual uma criança era chamada atenção, pois" não podia subir em árvores, afinal, era a única mulher do grupo e deveria dar o exemplo". Isto é violência de gênero, afinal aquela criança era uma mulher na idade infantil, parece pleonasmo, mas não é. Há dificuldade em perceber que meninas são violentadas por uma questões de gênero atreladas à infância, adolescência, raça e etc.

E por sermos violentadas de tantas formas e de tantos jeitos, a violência pode se tornar não identificada para a própria vítima que continua a ser sentir por vezes culpada pela situação (e encontra um coro forte que reforça essa ideia: "mulher gosta de apanhar", "mulher gosta de homem que não presta"...) e anestesiada diante das ações d@ agressor@.

A Lei Maria da Penha, como já dito, tem apenas 14 anos. De certa forma, já se mostra, retruca e é levantada pela voz dos grupos feministas organizados. O caminho foi aberto na própria história da lei (tentativa de homicídio de Maria da Penha pelo então marido, omissão do Estado Brasileiro e mandamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos para que legislasse a respeito da violência contra a mulher). Caminho aberto e várias batalhas temos ainda para desnaturalizar a violência contra mulheres, em quaisquer fases da vida, e termos mecanismos eficazes de combate, passando pela prevenção, pela responsabilização e tratamento dos agressores.

Recentemente ouvi de uma mulher como o ex-companheiro atendeu um chamado. Ela queria conversar sobre a filha mais velha deles, que tem por volta de 5 anos. Ele, com tantos episódios de agressão, fora visitar especialmente o filho mais novo, de 1 mês. Separados desde a fase final da gestação, detalhe: que ele não quis e tentou um aborto forçado, assim respondeu:

"O que foi? Você quer dar para mim? Eu não quero, você é fácil, mas se quiser me fazer uma chupetinha..."

Esta pessoa adoecida tenta mais uma vez repetir o jogo que aprendeu: rebaixar uma mulher a ponto de fazê-la sentir-se culpada, afinal como "um nada" pode querer respeito? Como este "nada" ousou enfrentá-lo e dar outro nome para o filho que não fosse Júnior? (lembrar do detalhe: filho que ele tentou abortar).

Espero que não tenha conseguido e reafirmo meu apoio no sentido da proteção integral, no que estiver ao meu alcance. Que este senhor possa ser chamado pela autoridade policial para esclarecimentos, tenha contra si o impedimento posto por medidas protetivas à mãe de seus filhos e que seja ouvido e responsabilizado pelo Poder Judiciário. Que seja acionado para o pagamento de pensão alimentícia. Que seja tratado! E mais: que possamos avançar e chamar para a discussão, nestes casos também,  outras leis de proteção à dignidade humana como o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei da Alienação parental, afinal falar desse jeito com a mãe na frente das filhas tem o poder de determinar perda de autoridade, uma das possibilidades que a lei aponta.

Para isso, Amanda*, precisamos de você.  Nós precisamos de você e você de nós.

Proponho que entre em um grupo de mulheres, como o MADA (www.grupomada.com.br ).  O bom de grupos como este é que é possível a superação da violência, através da escuta da experiência de outras mulheres, quebrando o sentimento de solidão, culpa e medo. Se você não quiser o grupo, inicie terapia individual com profissional que tenha a sensibilidade de perceber o círculo de violência que você tem vivido, ainda mais com a peculiaridade de você estar no pós-parto... Teu filho não tem nem 40 dias... Um contato é o do Instituto Gerar (http://www.institutogerar.com.br/,  https://www.facebook.com/institutogerar?fref=ts). O Grupo Mada é totalmente gratuito e no Instituto Gerar há a clínica social e você paga o que pode com a vantagem de indicarem profissionais que trabalham mais próximo à sua casa.

Proponho que você tome as medidas judiciais sim. Estarei com você e junto comigo há outras mulheres.

Você deu um passo importantíssimo. Lutou e defendeu teu filho contra a morte, contra herdar um nome imposto. Tudo isso mostrou a força latente que você possui.

Teu nome vem do latim, sabia? E significa "digna de ser amada". Eu também acho. Todas nós somos Amanda.


*nome fictício para preservar a identidade. Todas nós somos Amanda.









segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Kiumi

Véspera do dia dos pais, atendo uma mulher linda, que chegou com uma leveza, um sorriso aberto e carinhoso.

Narra como o pai do seu filho a deixou pouco após saber da gravidez, simplesmente da forma mais covarde - e infelizmente comum - que existe que, para mim, é deixar visível que nunca a viu como ser humano e sim como uma oportunidade. Algo que só mostra a imagem desse sujeito e nada diz sobre a beleza dessa mulher.

Ferida, porém forte, decidiu prosseguir com a gravidez. Tornou-se mãe mesmo antes de parir. Emocionou-se ao ouvir o coração do filho durante o ultrassom. Sentia que aquela criança era um presente em sua vida.

O pai da criança assinala que "deseja" registrá-la e já tem um nome para lhe dar. Registrar iria, de uma forma ou de outra, afinal ele sabe que não haveria muitas formas de fugir, mas dar o prenome (primeiro nome)... Ela, a mãe, titubeou e após ouvir conselhos, aceitou. Quem sabe seria uma forma de facilitar que aquele homem pudesse ser pai além do papel... mas dentro de si havia uma criança e o coração de mãe e filho tocavam juntos outro nome...

Nasce o bebê. Ganha nome e sobrenome paterno, mas não ganha um pai de verdade.

Ela engole por vezes o orgulho, telefona, argumenta a importância de um pai para uma criança. Ele não ouve, envolve a atual companheira que, por sua vez,  ignora qualquer outra coisa que não seja o sentimento de medo de perder "seu homem".

A criança, amada e protegida pela mãe, continua a crescer, independentemente do pai. Tem um olhar forte, uma mãe guerreira que o chama pelo nome que o coração dos dois escolheu.

Mais uma luta justa à frente: ação para acrescentar o nome pelo qual a criança se identifica e também o sobrenome materno. Não é, na realidade, mudança de nome. A criança se identifica pelo nome que não consta no registro que é aquele escolhido pelo pai ausente. O nome já é seu, basta a sensatez do Judiciário para isto reconhecer.

Direitos da personalidade, Convenção dos Direitos da Criança, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei de Registros e etc. Ação de "alteração" de nome...

Para mim não houve melhor presente de Dia dos Pais. Acredito que para esta mãe também não, iniciativa corajosa e bela. Somos mães que gestamos, parimos, educamos com amor e somos pais. Presença multiplicada por dois.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Para Camila (e Sophia, por extensão)

Em geral, mulheres mães me procuram angustiadas quanto à possibilidade da filha ou do filho passar a pernoitar com o pai como extensão do direito à convivência familiar. Narram aflitas a ausência paterna no cotidiano da criança e um certo desrespeito ao modo como elas, mães sozinhas, guiam a educação dos filhos. 
Quanto mais nova a criança for, mais desesperador é o relato. Afinal, também faz parte do respeito à criança preservar a condução de uma alimentação saudável, perceber e respeitar horários de sono e etc, ainda que - sabidamente- rotinas possam ser um tanto adaptadas, fazer da mãe presente uma vilã e do pai, com "participação especial mensal", o "cara legal", coloca no alvo do sofrimento a própria criança. E quando  ainda é amamentada, a angústia e o desespero não parecem substantivos aptos a resumir o quadro, talvez a palavra mais apropriada seja mesmo: dor.


Abro o primeiro parênteses para dizer que me pauto na história de mulheres mães corajosas, verdadeiras, capazes de se auto-analisarem para proteger seus filhos e conduzir o próprio processo de amadurecimentos. São estas mulheres que felizmente me procuram e as histórias que ouço me permitem a liberdade de escrever esse texto.

Peço licença para dizer que escreverei como quem e para quem se reconhece no direito de sentir. Sim, sentir, sentimentos. Ou seja, aqui os termos jurídicos entrarão depois – e se for o caso.

Dizer da angústia em saber que seu filho ou filha poderá ficar por horas longe do resguardo materno é quase que sempre mal interpretado pela ideologia machista que transita em boa parte das escutas, passando pela vizinha, Judiciário e até mesmo pela família. Por vezes, a primeira interpretação é a de que se trata de retaliação, afinal a mulher “só” pode estar se sentindo rejeitada por aquele homem que é pai da criança e por isso “inventa” questões. Junto a isso vem a questão de “tornar a criança dependente de si”, não cooperar para a autonomia do filho  para tornar a criança dela dependente e a distanciar do pai e blablablá. 
Infelizmente é assim que a mulher é ouvida muitas vezes: como a costela de Adão. Em outras palavras, a mulher é vista como aquela “que já não é mais esposa, companheira, namorada de fulano de tal e com ele tem um filho”.

A legislação determina que o superior interesse da criança é o que deve prevalecer e se o contexto é de pais que garantem a integridade física e emocional, há de se pensar que a criança deve estar ao lado da família materna e paterna. Ocorre que quando não há consenso sobre a possibilidade da criança pernoitar na casa do pai, tem-se quase um automatismo nas decisões judiciais que, em boa parte, pautam-se pela idade e pelos esteriótipos já mencionados.

Embora estudos mais sérios apontem a idade de dois anos como ponto de partida para o fim da fase de maior dependência da mãe, há uma tendência de entender a afirmação de forma incompleta, afinal o dito indica ponto de partida e não o fim.
Ademais, ainda que a criança conte com mais idade, cabe aos pais o esforço de manterem o respeito ao ritmo da criança, a forma que tem sido orientada. Algo importante que garante maior tranquilidade à mãe e segurança à criança.
  
Ocorre, porém, que quanto maior o conflito entre os pais, maior também é a chance dessa rotina básica não ser preservada quer seja por capricho ou por falta de diálogo mesmo.

Conflitos acontecem e, por muitas vezes, são inevitáveis e não devem ser depositados exclusivamente na conta da mulher e, tampouco, descontados na criança. Em casos, por exemplo, em que o pai ausente ingressa com a ação de regularização de visitas e consegue levar a criança que mal o conhece e vice-versa até para outra cidade, aconteceu tudo, menos um estudo aprofundado que levasse em consideração a própria criança, como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção dos Direitos da Criança.

Penso que devemos ter coragem para questionar o automatismo do Poder Judiciário nestas decisões bem como o machismo, classismo e racismo institucionais. Ser mãe neste país nos põe em situação de vulnerabilidade por todos os lados, quando o ideal era termos o reconhecimento de que geramos a vida e a maternidade nos fortalece. Então, busquemos estar juntas e nos reconhecermos como mulheres que somos (que dádiva!)