Força da Justiça

Força da Justiça

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

De que histórias é feito o chocolate no Brasil




A cena mais impactante da infância de meu pai talvez não tenha sido a fome na Bahia, nem a lembrança de juntarem, ele e os amiguinhos, durante um tempão, moedas para conseguirem entrar no boteco e aproveitar para finalmente assistir algumas poucas cenas do palhaço Arrelia, na novidade da tal caixa mágica chamada televisão. Na realidade a mais aterrorizante, viria na adolescência e foi da surra de chicote que quase o matou, resposta ao pedido de um chocolate. Era uma surra apresentada como corretiva para aprender a não querer coisa de branco e com a ameaça de repetição, caso comentasse o ocorrido. Ao lhe perguntar, pois foi por familiares que soube, ouvi praticamente e tão somente uma espécie de grunhido de dor vindo de um rosto retorcido.
Meu pai tem hoje 72 anos. Não sei se sabe, não sei se pergunto, o grunhido de dor me faz duvidar se lhe deveria perguntar sobre o caso do adolescente negro de 17 anos que, ao tentar furtar um chocolate do Supermercado Ricoy, foi torturado por 40 minutos, chicoteado praticamente nu, ameaçado, amordaçado.  Nas imagens divulgadas por seus agressores, dele só ouvi grunhidos e é possível ver o corpo em movimentos dilacerantes de dor, a cada chibatada.
Nesses grunhidos, ouço gritos ancestrais de dor e meu corpo junto com outros também ancestrais se agitam.
Esse movimento corporal pede mais, mais do que as respostas que conseguimos dar porque foi possível e ainda podemos, ainda mais em um momento de escancaramento do racismo e de suas chibatadas.
O Supermercado Ricoy emitiu nota sobre seu estarrecimento diante da tortura cometida e afirma que os funcionários eram de uma empresa terceirizada que já não presta serviços à rede e se “seus” o fossem seriam demitidos sumariamente. Não divulga nome da empresa terceirizada.
Impossível aceitar tal posicionamento, impossível. Dois funcionários da segurança saem de seus postos, talvez os únicos do turno, e torturam durante 40 minutos uma pessoa no interior do estabelecimento, com a tranquilidade de realizar gravações e a responsabilidade é só da terceirizada?
Também inadmissível seria o argumento de que a responsabilidade seria, no máximo, da pessoa que exercia a gerência pelo Ricoy. Por favor, não. Não quero nem pensar nas pressões sofridas para manter o patrimônio do patrão e aumentar os lucros.
Acho que não dá para esperar uma resposta coerente do Ricoy que seria, minimamente, a de reconhecer a corresponsabilidade no ocorrido. Aliás, nem da Nestlè, da Hershey, Mars...que usam trabalho escravo infantil de crianças africanas na indústria do chocolate e empurram “ad eternum” a solução. Aliás do aliás, ao nos lembrarmos da estrutura racista do Brasil e das plantações de cacau no sul da Bahia, é possível perceber que quem construiu a riqueza brasileira e a mantém pouco ou nada dela desfrutou, desfruta. Negro, morador de rua, catador de papelão, “menor”, visualizo quem desconsidere a humanidade do adolescente quiçá sua contribuição para o país. Vidas descartáveis.
O movimento gritante dos corpos ancestrais diz que é possível desenharmos novas respostas e redesenharmos as habituais também.
Os protestos e ações organizadas pelo Movimento Negro contra racismo do Shopping Higienópolis, em 2012, são importantes, fizeram com que, por exemplo, o Ministério Público instaurasse inquérito para saber como empresas terceirizadas treinam seus funcionários para a atuação de acordo com a dignidade de toda pessoa. Como está o andamento do Inquérito? Chegou à tal empresa que prestava serviço ao Ricoy? Quais ações exigir do Ricoy em forma de retratação pública individual ao jovem e coletiva e como acompanhá-las? Igualmente quanto à empresa terceirizada. Como o Ministério Público está atuando? Como a Defensoria Pública pode ser provocada a atuar? Como podemos criar novas formas de atuação coletiva, nutridos pelas experiências anteriores?
São questões... 
Nesse sábado, dia 07, haverá manifestação organizada pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio em frente ao Ricoy da Vila Joaniza (onde ocorreu) às 11h:30min, veja o link.
Voltando ao início, talvez conversar com o homem negro de 72 anos sobre um patrício seu de 17 (ele gosta de chamar irmãos de patrício) teve, em 2019, o mesmo desejo e mesma resposta racista, mas que os grunhidos se tornaram gritos de muitas pessoas que juntas protestam, pensam respostas também. Talvez perguntar quais os desejos que ainda tem para si para juntos, quem sabe, desfrutar nem que seja um tiquinho algum. Outro dia disse que achava bonito manacás...

Sobre caso:
Sobre a manifestação:
Sobre o caso no Shopping Higienópolis:
Sobre chocolate:

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Seu time de futebol defende o quê? - O Vulcão contrata o goleiro Bruno




O ponto não é considerar que alguém mofar na prisão vá resolver a criminalidade (nem uma, nem duas, nem  as 812 mil pessoas atualmente presas, cuja metade nem condenação tem), tampouco achar que a solução para quem sai do sistema carcerário seja a condenação moral perpétua (isca perfeita para reincidência), a questão entorno do goleiro Bruno é outra.
O Brasil é um país do futebol, contando com quem goste ou não disso. Assistir ao jogo de futebol do seu time joga no campo uma série de recordações, frustrações, ansiedades, saudades, desejos, manifestações políticas, devaneios e adoecimentos (na maioria das vezes, coletivos...tal como a modalidade esportiva de que tratamos).
Falando em adoecimento, o Brasil está pandêmico. No dicionário, pandemia significa “enfermidade epidêmica amplamente disseminada”. Sim, desde o último pleito eleitoral o racismo, o machismo tem sido amplamente disseminados. Amplamente disseminados e com a habilidade brasileira de não precisar oficializar e sim fazer.
Políticas públicas de afirmação racial cortadas, homicídios praticados pela Polícia Militar em alta (com Projeto de Lei que amplia o conceito de legítima defesa a favor de agentes estatais podemos imaginar que “o mais do mesmo”, corpo negro como alvo, irá aumentar), maior ameaça do que outrora às populações indígenas e quilombola ... Na questão de gênero, houve aumento de 76% dos casos de feminicídio já no primeiro trimestre do ano, sendo que a cada 10 casos, 8 mulheres foram mortas dentro de caso; e, ainda assim, setores conservadores (importante pensar no termo conservar) mobilizam-se para que as escolas sejam igualmente conservadoras e não discutam gênero de uma forma a superar a masculinidade tóxica (porque de gênero se fala em todo lugar, difere-se apenas no assumir isto e qual condução se dá à discussão).
É nesse contexto que choca a disputa de times pela contratação do goleiro Bruno. É o segundo momento em que isto acontece. Condenado, em 2010, pela morte e sequestro de Eliza Samudio, mulher com quem teve um filho e achou por bem não ser importunado mais com cobranças sobre sua responsabilidade paterna, “eliminando-a”, como no mata-a-mata do sistema eliminatório do futebol. Contou com a velha solidariedade masculina de amigos e com a ajuda, em grau subalterno, de duas mulheres de suas relações íntimas. Bruno também foi condenado à pena de 22 anos de prisão por sequestro e cárcere privado de Bruninho, seu filho, que tinha apenas 4 (quatro) meses de vida, fase de alimentação exclusiva de leite materno, de conexão profunda com a mãe.
O clube que o contratou é o Poço de Caldas, o Vulcão, do Estado de Minas Geral, justamente onde Eliza Samudio foi morta (na cidade de Vespasiano). Aliás, Bruno é mineiro, de uma cidade pequena chamada Ribeirão das Neves, tendo sido a referência para as crianças dali no momento de sua ascensão no futebol. A posição de goleiro depois de Rogério Ceni, Dida, Taffarel, Cássio, Aranha passou a ser de escolha, de talento, de quem sabe defender (por vezes, dentro e fora do campo, no exemplo de Aranha).
Em sua página social o Vulcão se manifestou “Nosso trabalho é um trabalho social dando oportunidade para todos. Em breve estaremos anunciando uma grande contratação (...)”. Ótimo, mostrem suas ações em defesa dos direitos das crianças e adolescentes que sonham em jogar futebol, mostrem com atuam em consonância com esses direitos, mas parece que a escolha foi a de contratar um rapaz que tirou a vida da mãe de uma criança de 4 meses de idade e torná-lo “referência” do trabalho social. Difícil conjugar. Difícil digerir.
Sendo uma pessoa pública, o feminicídio praticado por Bruno contra Eliza tem contornos ainda mais educativos, assim como todas as ações que se dirigirem a ele ou que forem por ele praticadas porque são "amplamente divulgadas". Casou-se durante o período de prisão, antes contou com os melhores advogados e hoje com uma advogada; durante uma concessão de saída, foi flagrado rodeado de mulheres, dá autógrafos, enfim, o que podemos e devemos fazer? Antes que falem que a razão de toda essa desgraceira está nas mulheres, vale ressaltar que a educação de gênero conservadora e dominante dos grandes meios de comunicação, por exemplo, literalmente “coloca na cabeça das pessoas” a ideia de que “a culpa é da mulher”, “daquela mulher que não se deu o valor”, portanto, ainda inúmeras são as pessoas, incluindo mulheres, que acreditam, por exemplo, que Bruno teve má sorte. Talvez agora bem casado com uma “boa mulher”, mas ainda assim “sabe maria chuteira como é”, sabe como é “homem não controla seus instintos”.
Bruno não deveria voltar à posição profissional anterior, que tivesse chance de recolocação profissional, o que deveria valer para todos e todas que estão no sistema carcerário brasileiro (parte sequer teve a chance do primeiro emprego, então, devemos falar em colocação profissional digna). Vale deixar bem explicado: a tragédia envolvendo Eliza Samudio e Bruno é dolorosamente exemplificativa, todos os casos que envolvem figuras públicas devem ter o mesmo raciocínio, não dá para que cometeu feminicídio voltar ao estado anterior, ainda mais se figura pública. Sobre Bruno, ainda no viés exemplificativo, que fosse obrigado a participar de grupos reflexivos sobre masculinidade. Que pudesse falar para as crianças e adolescentes que observam que a forma com que a maioria de homens adultos tratam mulheres é inconcebível, que ele errou ao desviar o foco da sua profissão para desfrutar de mulheres como se fossem comida de gente ou de cães, objeto de uso de prazer e que por isso não poderia jamais voltar a ser goleiro. Como goleiro,  Bruno defenderá seu time, o que o contratar. Agora os times defenderão o quê com esse time de contratação? O que representará, na idade adulta, crianças e adolescentes terem um ídolo que matou a mãe do filho de 4 meses de vida?