Força da Justiça

Força da Justiça

domingo, 28 de setembro de 2014

O que bonecas negras, o caso Goleiro Aranha, a vitimização de Patrícia Moreira e "o papel da mulher na sociedade moderna" tem em comum. Esboço de uma reflexão.

Nas últimas semanas fui convidada a fazer formações (momentos de apropriação de conceitos e reflexões) para mulheres com o tema "O papel da mulher na sociedade". Como o tema é muito amplo, optamos, eu e a parceira de trabalho, por conhecer as duas turmas, pois haveria 3, 4 encontros com cada uma delas, e sentir o que traziam como anseios, saberes e dali tocar em frente.

Eram turmas bem heterogêneas, com mulheres de diversas faixas etárias, escolaridade, experiências profissionais, raça/etnia bem como de diferentes territórios desta grande capital paulista.

Algumas levavam suas crianças ou porque não tinham com quem as deixasse ou simplesmente porque queriam estar  presentes com elas. Sugeri às pessoas que me convidaram a criação de "uma caixa pedagógica" com a inclusão de bonec@s negr@s bem como de livros infantis que garantissem esses personagens. Percebi um silêncio que depois de confirmou como constrangimento. 

No dia posterior, no qual haveria atividade, a equipe mostrou uma caixinha com alguns brinquedos doados por ela mesma. Achei legal e sublinhei a sugestão, mais uma vez, da inclusão de bonecos negr@s e dos livros. Quando cheguei em casa, havia recebido uma mensagem, enquanto estava a caminho, de que não havia sido previsto e assim seria não seria possível atender. Não entendi. "Repliquei" que realmente não percebemos todas as necessidades no momento inicial, mas era possível alcançar parcerias. Novo silêncio. Percebi alteração brusca na forma em que passei a ser recebida pela equipe. Escrevi à uma integrante com quem tinha laços de amizades e perguntei se havia acontecido algum constrangimento com a sugestão e li "com a sugestão propriamente dita não".

Enfim, passei a levar alguns brinquedos de minha filha para emprestar às crianças. Até onde pude participar, as crianças que acompanhavam suas mães eram negras. 

Continuei a realizar as formações e em uma delas, nos últimos cinco minutos, houve uma colocação precipitada, ao meu ver, a respeito de Patrícia Moreira, uma das pessoas que ofendeu racialmente o goleiro Aranha, ser realmente a única culpada. Isso ocorreu justamente na semana em que a mídia, evidentemente que isto ocorreria, investiu maciçamente na vitimização de Patrícia para tentar apagar toda a repercussão que o caso teve, no sentido de alcance nunca visto anteriormente. Há inquérito policial em andamento, Patrícia foi a primeira a ser identificada, outros também devem o ser; por insistir em cantos de guerra racistas o Grêmio foi penalizado com a expulsão da Copa do Brasil; Aranha passa a ser merecidamente símbolo da voz da população negra que já não aguenta mais as ofensas banais, as piadas racistas, o genocídio histórico de sua juventude.

Cinco últimos minutos... passamos a ouvir justificações racistas e Aranha saiu como culpado por ter sido ofendido e ainda ganhou o adjetivo de racista. Enfim, nosso papel como formadoras é o de questionar os preconceitos e discriminações que atacam a dignidade humana e a bola do racismo foi cantada, quer dizer, chutada. Seria de toda forma, não tenho dúvida, porque somos brasileir@s e o racismo está entranhado em nosso cotidiano. A melhor forma de combate é o reconhecimento e reflexão e entramos nesse jogo querendo ganhar de goleada contra o racismo.

Formação preparada a quatro mãos. Sou chamada, em separado da minha companheira de trabalho, pela representante da equipe e ouço frases desencontradas. Tenho, sobretudo, a imagem de alguém em descontrole, cuspindo autoritarismo e ódio. Talvez, em meio às falas desencontradas, a que resume é: "aqui não falamos sobre isso e sim sobre outras discriminações". Não fui ouvida e percebi que seria inútil insistir em qualquer "conversa" com aquela "interlocutora".

Não aceitei o "convite" de me retirar e toquei as atividades, embora com forte censura no ar, a temática do racismo foi enfrentada e considero que semeamos, provocamos o rompimento com a ideologia da superioridade racial branca. Quando haverá colheita (haverá?), não sei. Quando haverá o rompimento (haverá?), não sei, mas posso afirmar que vi expressões de mulheres sendo acolhidas em suas dores quando narraram o racismo e libertar a voz, gritar a dor, é um exercício empoderador. Vi que o grupo se abriu para contar mais dores e também alegrias. A alegria apareceu, curiosamente após a dor ser libertada. 

E passei a refletir mais ainda, processo no qual estou e ficarei por um bom tempo, sobre a ligação entre bonec@s negr@s, o caso Aranha, a vitimização de Patrícia Moreira e o "papel da mulher na sociedade moderna". E tem tudo a ver. 

Primeiramente, racismo não é assunto só de quem é negr@, indígena, cigan@, é assunto de tod@s nós. A ideologia da superioridade racial, que sustenta o racismo, prejudica a saúde emocional relações humanas, assim como o machismo. Estamos doentes,  Além de que devemos nos lembrar sempre do efeito "teia", junção de fatores, por exemplo, a mulher negra tende a enfrentar o machismo e o racismo ao mesmo tempo.

Segundo, vi um ponto positivo nesse "projeto": as mulheres podem levar suas crianças. É um exemplo de respeito à dignidade da mulher mãe e das crianças e adolescentes. Se lá as crianças puderem encontrar brinquedos que represente a todas, o avanço seria muito bonito, pois é impossível negar que crianças se desenvolvem ao brincar e na relação com os brinquedos repetem o que vêem, mas sobretudo criam, amam, pois estão menos adoentadas do que nós. 

Fiz uma atividade há muito tempo, uma contação de história em que a personagem principal era negra. Uma das crianças não a suportou e tive que proteger para não ser destruída. Foi um aprendizado difícil, acho mais para mim do que para a criança "de mal com a boneca negra", pois não sabia ao certo como fazer. Só que na outra contação de história, com a mesma boneca e criança, algo muito importante mudou o cenário. A criança se apaixonou pela boneca, acarinhava-a... Só as duas saberiam contar (risos) sobre a redenção que ali houve. A possibilidade de amor e cura de uma criança é bem maior do que a nossa.

Tudo isso #juntoemisturado# e  mais ações contribuiriam, sem dúvida, para que alguém não visse como piada chamar o outro de "macaco" ou "macaca" ou percebesse o crime a existência de hinos que exaltassem o ódio, o racismo, o machismo. Contribuiria também para que a Lei 10639 fosse mais conhecida, ampliada a todos os espaços de educação (formais e informais) e garantida, poderia contribuir para casos como o que Patrícia Moreira é apontada como ofensora racial despertasse mais o sentimento de que precisamos eliminar o racismo e não procurar um meio para absolver a ela - e todos os demais que assim praticarem (caso de repercussão  mundial, lembre-se)- e condenar quem realmente foi vítima. Precisamos nos reeducar e ponto.

Racismo, machismo, maternidade, direito a brincar em condições de igualdade, equipe do Projeto querido mencionado, tudo isso tem a ver com o "papel da mulher na sociedade moderna" e de todas as mulheres, querid@s, brancas, negras, indígenas, amarelas porque tem a ver com o respeito às diferenças, intimamente ligado ao direito à igualdade que é o ideal a ser alcançado pelo Projeto que coordenam.

Sugestões:


Imagem: "O xadrez das cores" de Midmix e Marco Schiavon

Assista também "O CIRCO- Mulher, mãe e negra": https://www.youtube.com/watch?v=oDKS7TxVOnk

Professor Kabengele Munanga fala sobre o Genocídio da Juventude Negra e o Racismo: https://www.youtube.com/watch?v=fU86gtP8B1E








sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Alienação parental e alienar-se parentalmente

Estou bem pensativa nesses dias sobre o tema da alienação parental, mas sob a ótica do alienar-se parentalmente, ou seja, quando deliberadamente a ausência paterna (é o que tratarei aqui, sabidamente há casos de ausência materna em menor número) na vida de uma criança, aliena esse "papel".

Há muito trabalho tanto como educadora como advogada na orientação de pais sobre como o bem estar da criança é que deve nos direcionar e realmente acho isto. Nessa trajetória percebi sim vários casos em que a criança era usada como objeto de barganha de algo ou como vingança e, como geralmente somos nós, mulheres, a assumir a responsabilidade pela educação, os casos que teria para contar são sobre mães que dificultavam o contato do pai com o filho ou filha como forma de obter atenção ou de, como já dito, vingar-se da relação mal sucedida. Há também casos em que o interesse é financeiro. 

Só que esmagadoramente as situações expõem o contrário: mães que trilham solitariamente a maternidade não por opção, mas porque quem seria o parceiro na relação com a criança decide se alienar da responsabilidade e para tal inventa mil desculpas ACEITAS pelas pessoas sem muito questionamento. De forma geral, as desculpas tem a ver com responsabilizar a mãe da criança pela alienação paterna. Ah, mas pode ser qualquer outra pessoa ou situação, para estes pais o fato é que não assumem qualquer responsabilidade. Aliás, há aqueles que pagam pensão alimentícia não como participação na sobrevivência d@ filh@, mas como trunfo para se alienarem emocionalmente da vida de quem contribuíram para vir ao mundo.

Em voga a questão da alienação parental, trazida acertamente pela Lei 12318/2010 que a define como a " interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. "

Não tenho dúvida de que comportamento tão prejudicial às crianças e adolescentes deva ser identificado o mais rápido possível e medidas responsáveis sejam tomadas. A alienação parental existe desde muito tempo e só quem passou por ela e a percebeu pode dizer que se leva a vida toda para cicatrizar as feridas. Só que não encontro na legislação algo que me conforte quanto à omissão paterna (o que aqui reflito a respeito). Pensando nas hipóteses mais graves, ainda não vejo muito sentido nelas, parecem-me que favorecem os homens que não são pais de verdade. Destituir o poder familiar de quem nunca se importou com isso, por exemplo, para quê? Talvez mais para frente ainda o papai diga que não pode participar porque a malvada mãe da criança mentiu para o juiz. E o que se diria à criança para embasar uma ação de destituição do poder familiar? Horrível. Beco sem saída. Criminalizar? Para quê? Ainda que fosse não resolveria a questão da ausência, do alienar-se de forma proposital e não assumida, que tantas vezes dilacera os sentimentos d@s pequen@s.

Gostaria mesmo que esses pais fossem obrigados a se matricular em cursos de "como amar uma criança" no qual fossem estimulados a refletir sobre as consequências deste tipo de alienação e terem estágios de convivência com as crianças analisados. Educação forçada tem algum alcance? Não sei, mas algo deve ser tentado e que profissionais da sociedade, ou seja, não de instâncias do Sistema de Justiça, fossem os educadores e educadoras, Penso além, tais profissionais devem beber saberes do feminismo sim, da educação com apego, da criação humanizada. Até para as mulheres que não permitem a convivência entre pai e filh@s o caminho, em minha opinião e se for caso de mágoa, é poder acolher, ouvir e dizer: "certo, você tem razões em sua mágoa, mas vamos pensar outros caminhos para as crianças" e não negar o direito à mágoa ou a inferiorizar, julgar moralmente por isso.

Recentemente ouvi dois relatos sobre pais que pagam bem irregularmente a pensão alimentícia e que ainda assim ingressaram com ação de regularização de visita com o argumento óbvio de que são impedidos pela mãe das crianças de ter contato, apresentando-se como pai exemplares, entristecidos pelo distanciamento forçado e tal. Nos dois casos me chamou atenção o fato de que as mulheres ao tentarem argumentar que não eram contra a convivência e sim sobre a forma pela qual o pai queria, desrespeitando o período de amamentação, inclusive, ouviram frases como "ele tem razão. Nós (judiciário) estamos cheios de casos de crianças que os pais desapareceram. Este aqui quer estar com @s filh@s e se você os ama tem que agradecer". E a vida segue. Nada aprofundado. O machismo agradece.

Acredito, todavia, nas mudanças trazidas pela luta diária. Prefiro imagens de mulheres guerreiras que abrem caminhos, ainda que dele não possam desfrutar a tempo, à imagem da Justiça Cega. 

E essa pequena reflexão-desabafo de hoje trás à minha lembrança o verso do poema Consolo na praia, de Carlos Drummond de Andrade:

"a injustiça não se resolve
 a sombra do mundo errado
 murmuraste um protesto tímido, mas virão outros".





quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Soluçar de dor

Há algo no ar que me faz ter otimismo. Embora o cenário que se arrasta a séculos seja péssimo, me parece que o tempo, este amigo 'esquisito', tem demonstrado que se a violência racial não deixou de existir, os movimentos organizados, o grito politizado do goleiro Aranha recentemente, também não deixaram de ecoar e pontuam! Além de que tudo o que foi feito por aquelas e aqueles que estiveram aqui antes de nós, semeando, encontra momentos de colheita (salve Luíza Mahin, Tereza do Quariterê, Dandara, Chica da Silva, Movimento Negro Unificado, Carolina de Jesus, Zumbi, Martin Luther King, Malcom X, Mandela, Steve Biko...)

Se o cheiro de sangue, lágrimas, suor das dores diárias que o racismo provoca está no ar, também sinto as vibrações dos gritos por justiça, das gargalhadas em cada batalha vencida. Temos que comemorar sim.

O caso "Maria das Dores" ainda está no meu pensamento. Vocês devem se lembrar porque está bem recente, praticamente ao lado do caso Aranha: ela, jovem negra, posta uma foto na rede social em que está ao lado do namorado, branco, e passou a receber injúrias raciais como "onde você comprou essa escrava?" e etc.

A situação foi denunciada e lavrado o boletim de ocorrência. Até onde as investigações do inquérito foram divulgadas, o crime teria sido praticado por jovens na maioria entre 17 a 21 anos e de São Paulo, além que outros casais - como o formado por Maria das Dores e o namorado-  foram atacados pelo mesmo grupo, o que indicaria formação de quadrilha.

Também são jovens os torcedores do Grêmio que ofendiam o goleiro Aranha, embora, obviamente, o racismo não seja exclusivo da juventude, ao contrário, e é neste ponto que quero me ater.

Adolescentes e jovens desejam ser reconhecidos e para isso, muitas vezes, extrapolam valores que percebem nos adultos, como quem diz "eu também penso assim!' e mais: "eu não só penso, como tenho coragem de fazer, posso ser aceito?". Então, antes de fazermos coro com respostas imbecis como o da redução da idade penal, pensemos.

Sociedade de valores racistas!!!!!

Mas nosso grito ecoa:

Marcha contra o genocídio do povo negro em todos os cantos do país. É isso mesmo!
Campanha: Reaja ou será morto!
Manifestações em todo o país por Amarildo, Cláudia! (nenhum desses casos me sai da cabeça, especialmente o de Cláudia e da criança Juan)
Grêmio expulso da Copa do Brasil!
Organização contra a série "Sexo e as nêga" da infâme Globo e assim vai, assim vamos!

O que Maria das Dores perdeu com tudo isso, esse amigo tempo a dirá melhor, pois há perda minimamente da inocência de acreditar. Acredito que (tapa na cara do racismo, machismo) ela também tende a ganhar. Esteve ao lado de Zezé Mota, enfrentou a situação e passa, assim como o goleiro Aranha, a ser referência e com o adendo de que esses casos exemplares não tiveram como ser abafados pela mídia: Aranha gritou diante das câmaras, as injúrias raciais contra Maria das Dores se deram no facebook, cada vez mais pessoas filmam cenas violentas pelo celular e as denunciam. Torço para que sua identidade de mulher negra seja fortalecida com tudo isso.

Que o Judiciário seja invadido por esta demanda, da forma tradicional, de formas criativas e que seja denunciado em casos de racismo institucional.

Que nossos gritem ecoem em todos os espaços.


Alguns links relacionados:

Caso Juan: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/09/13/pms-do-caso-juan-sao-condenados-a-mais-de-30-anos-de-prisao.htm

http://www.geledes.org.br/ii-marcha-nacional-contra-o-genocidio-povo-negro/#axzz3CMacATzF

http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/04/18/nota-publica-da-campanha-reaja-ou-sera-morta-reaja-ou-sera-morto-sobre-a-greve-da-policia-militar-do-estado-da-bahia/

http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/09/filme-sobre-amarildo-discute-politica-de-seguranca-em-comunidades-do-rio.html

http://www.brasildefato.com.br/node/28217

http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/gremio/noticia/2014/09/stjd-exclui-gremio-da-copa-do-brasil-por-ofensas-racistas-a-aranha-4590000.html

http://esportes.r7.com/blogs/cosme-rimoli/x-01092014/  (Goleiro Aranha não aceita perdão de ofensora)

http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2014/08/chorei-muito-diz-jovem-negra-vitima-de-racismo-em-foto-no-facebook.html