A cena mais impactante da infância de meu pai talvez não tenha sido a fome na Bahia, nem a lembrança de juntarem, ele e os amiguinhos, durante um tempão, moedas para conseguirem entrar no boteco e aproveitar para finalmente assistir algumas poucas cenas do palhaço Arrelia, na novidade da tal caixa mágica chamada televisão. Na realidade a mais aterrorizante, viria na adolescência e foi da surra de chicote que quase o matou, resposta ao pedido de um chocolate. Era uma surra apresentada como corretiva para aprender a não querer coisa de branco e com a ameaça de repetição, caso comentasse o ocorrido. Ao lhe perguntar, pois foi por familiares que soube, ouvi praticamente e tão somente uma espécie de grunhido de dor vindo de um rosto retorcido.
Meu pai tem hoje 72 anos. Não sei se
sabe, não sei se pergunto, o grunhido de dor me faz duvidar se lhe deveria
perguntar sobre o caso do adolescente negro de 17 anos que, ao tentar furtar um
chocolate do Supermercado Ricoy, foi torturado por 40 minutos, chicoteado
praticamente nu, ameaçado, amordaçado.
Nas imagens divulgadas por seus agressores, dele só ouvi grunhidos e é
possível ver o corpo em movimentos dilacerantes de dor, a cada chibatada.
Nesses grunhidos, ouço gritos
ancestrais de dor e meu corpo junto com outros também ancestrais se agitam.
Esse movimento corporal pede mais,
mais do que as respostas que conseguimos dar porque foi possível e ainda
podemos, ainda mais em um momento de escancaramento do racismo e de suas
chibatadas.
O Supermercado Ricoy emitiu nota
sobre seu estarrecimento diante da tortura cometida e afirma que os
funcionários eram de uma empresa terceirizada que já não presta serviços à rede
e se “seus” o fossem seriam demitidos sumariamente. Não divulga nome da empresa
terceirizada.
Impossível aceitar tal
posicionamento, impossível. Dois funcionários da segurança saem de seus postos,
talvez os únicos do turno, e torturam durante 40 minutos uma pessoa no interior
do estabelecimento, com a tranquilidade de realizar gravações e a
responsabilidade é só da terceirizada?
Também inadmissível seria o argumento
de que a responsabilidade seria, no máximo, da pessoa que exercia a gerência
pelo Ricoy. Por favor, não. Não quero nem pensar nas pressões sofridas para
manter o patrimônio do patrão e aumentar os lucros.
Acho que não dá para esperar uma
resposta coerente do Ricoy que seria, minimamente, a de reconhecer a corresponsabilidade
no ocorrido. Aliás, nem da Nestlè, da Hershey, Mars...que usam trabalho escravo
infantil de crianças africanas na indústria do chocolate e empurram “ad eternum”
a solução. Aliás do aliás, ao nos lembrarmos da estrutura racista do Brasil e das
plantações de cacau no sul da Bahia, é possível perceber que quem construiu a
riqueza brasileira e a mantém pouco ou nada dela desfrutou, desfruta. Negro, morador
de rua, catador de papelão, “menor”, visualizo quem desconsidere a humanidade
do adolescente quiçá sua contribuição para o país. Vidas descartáveis.
O movimento gritante dos corpos
ancestrais diz que é possível desenharmos novas respostas e redesenharmos as
habituais também.
Os protestos e ações organizadas pelo
Movimento Negro contra racismo do Shopping Higienópolis, em 2012, são
importantes, fizeram com que, por exemplo, o Ministério Público instaurasse
inquérito para saber como empresas terceirizadas treinam seus funcionários para
a atuação de acordo com a dignidade de toda pessoa. Como está o andamento do
Inquérito? Chegou à tal empresa que prestava serviço ao Ricoy? Quais ações
exigir do Ricoy em forma de retratação pública individual ao jovem e coletiva e
como acompanhá-las? Igualmente quanto à empresa terceirizada. Como o Ministério
Público está atuando? Como a Defensoria Pública pode ser provocada a atuar?
Como podemos criar novas formas de atuação coletiva, nutridos pelas
experiências anteriores?
São questões...
Nesse sábado, dia 07, haverá manifestação organizada pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio em frente ao Ricoy da Vila Joaniza (onde ocorreu) às 11h:30min, veja o link.
Voltando ao início, talvez conversar com
o homem negro de 72 anos sobre um patrício seu de 17 (ele gosta de chamar
irmãos de patrício) teve, em 2019, o mesmo desejo e mesma resposta racista, mas
que os grunhidos se tornaram gritos de muitas pessoas que juntas protestam,
pensam respostas também. Talvez perguntar quais os desejos que ainda tem para
si para juntos, quem sabe, desfrutar nem que seja um tiquinho algum. Outro dia
disse que achava bonito manacás...
Sobre caso:
Sobre a manifestação:
Sobre o caso no Shopping Higienópolis:
Sobre chocolate: